quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
Resolução Política da Esquerda Popular Socialista.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
“A causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo”
A crise que vivemos é mais profunda e bastante diferente da que conhecemos nos anos 1929 e 1930, afirma o professor François Houtart. Segundo ele, sua dimensão evidentemente está vinculada ao fenômeno da globalização. Porém, ressalta que a atual crise não é nova. Não é a primeira crise do sistema financeiro e muitos dizem que não será a última. Houtart acredita que o mais importante, e isso é diferente dos anos 1929 e 1930, é essa combinação com vários tipos de crises. E afirma: a causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo. “A crise financeira é devida à lógica do capital, que tenta buscar mais lucros para acumular capital, que é, dentro dessa teoria, o motor da economia”.
Houtart fala sobre as várias facetas desta crise, inclusive a crise alimentar, a qual, segundo ele, faz parte da mesma lógica. “A combinação da crise econômica com a alimentar é algo novo. Porém, são vinculadas”.
A entrevista é de Nilton Viana e publicada pelo jornal Brasil de Fato, 20-01-2012.
François Houtart é sociólogo e professor da Universidade Católica de Louvain (Bélgica), diretor do Centro Tricontinental, entidade que desenvolve trabalho na Ásia, África e América Latina.
Eis a entrevista.
O mundo vive hoje uma crise mundial, que tem afetado principalmente os Estados Unidos e a Europa. Como o senhor avalia esse cenário?
Eu penso que, primeiro, se trata de uma crise do sistema econômico capitalista, que é muito similar à crise dos anos de 1929-1930 e também a muitas outras crises cíclicas do sistema capitalista onde há subprodução, subconsumo e eventualmente crises financeiras.
A crise que vivemos hoje me parece mais profunda e bastante diferente da que conhecemos nos anos 1929 e 1930, porque, primeiro, sua dimensão evidentemente está vinculada ao fenômeno da globalização. Isso significa que hoje há um efeito muito mais global do que nos anos de 1929-1930 e que evidentemente afeta o conjunto da economia. Já está afetando os países emergentes e de uma maneira ou outra afetará outros países do mundo. Porém, o mais importante, e isso é diferente dos anos 1929 e 1930, é essa combinação com vários tipos de crises. Por exemplo, a crise alimentar, que foi conjuntural nos anos 2008-2009 e que correspondeu à crise do capital financeiro. Porque o capital financeiro tem buscado novos lugares de especulação e o lugar foi a alimentação, com conseqüências terríveis. E a crise alimentar é também estrutural e não somente conjuntural, porque precisamente afeta toda a maneira de fazer a agricultura. E a introdução cada vez mais forte do capital dentro da agricultura, com a concentração de terras, gera uma contrarreforma agrária mundial e o desenvolvimento de monocultivos, com todas as consequências ecológicas de destruição de ambiente e também de destruição humana; por exemplo, a exclusão dos camponeses de suas terras.
A combinação da crise econômica com a alimentar é algo novo. Porém, são vinculadas. Na verdade, a crise financeira é devida à lógica do capital, que tenta buscar mais lucros para acumular capital, que é, dentro dessa teoria, o motor da economia. Se o capital financeiro é mais proveitoso do que o produtivo, ele faz a lei da economia mundial como é hoje. Assim, essa é evidentemente a lógica do capitalismo que provoca a crise financeira, que tem efeitos econômicos, porque tem efeitos sobre emprego, crédito e toda a economia. Porém, é essa mesma lógica que está provocando a crise alimentar, porque, por uma parte, há uma especulação – o preço do trigo, por exemplo, tem dobrado 100% em um ano, menos de um ano, por razões puramente especulativas.
E quais são as conseqüências sociais dessa crise?
Na verdade, as consequências sociais da crise financeira são sentidas além das fronteiras da sua própria origem e afetam os fundamentos da economia. Desemprego, custo de vida crescente, a exclusão dos mais pobres, a vulnerabilidade das classes médias, expandindo a lista de vítimas no mundo. Não é apenas um acidente no percurso, ou apenas de abusos cometidos por alguns atores econômicos que precisam ser punidos. Somos confrontados com uma lógica que corre ao longo da história econômica do século passado. O desenrolar dos acontecimentos sempre responde à pressão das taxas de lucro. A crise que vivemos hoje não é nova. Não é a primeira crise do sistema financeiro e muitos dizem que não será a última.
A seu ver, qual é a principal causa dessa crise mundial?
A causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo, que torna o capital motor da economia. E seu desenvolvimento – essencialmente, a acumulação – leva à maximização do lucro. Se a financeirização da economia favorece a taxa de lucro e se a especulação acelerou o fenômeno, a organização da economia como um todo continua dessa forma. Mas um mercado não regulamentado capitalista conduz inevitavelmente à crise. E, como indicado no relatório da Comissão das Nações Unidas, é uma crise macroeconômica.
Um dos graves problemas da humanidade hoje é a fome. Como fica essa questão frente a esse cenário de crise?
A crise alimentar tem dois aspectos, um cíclico e um estrutural. O primeiro manifestou-se com o aumento dos preços dos alimentos em 2007 e 2008. Sim, para explicar o fenômeno, houve alguma base eficiente, como alguma diminuição fraca em reservas de alimentos, mas a principal razão foi de natureza especulativa, em que a produção de agrocombustíveis não ficou imune (etanol de milho nos Estados Unidos). Assim, o preço do trigo na Chicago Board(Bolsa de Chicago) aumentou para 100%, do milho 98% e do etanol, 80%. Durante esses anos, uma parte do capital especulativo passou de outros setores para investir na produção de alimentos, na busca por lucros rápidos e significativos. Consequentemente, segundo o diretor da FAO, em geral, a cada ano, em 2008 e 2009, mais de 50 milhões de pessoas ficaram abaixo da linha da pobreza e o total de pessoas que viviam nessa situação em 2008 atingiu um valor nunca antes conhecido – de mais de um bilhão de pessoas. Essa situação foi claramente o resultado da lógica do lucro, a lei capitalista do valor.
O segundo aspecto é estrutural. É a expansão durante os últimos anos da monocultura, resultando na concentração da terra, ou seja, uma verdadeira contrarreforma. A agricultura familiar foi destruída em todo o mundo sob o pretexto de sua baixa produtividade. Na verdade, as monoculturas têm uma produção que às vezes pode ir até 500% ou mais de 1000%. No entanto, dois fatores devem ser levados em conta. A primeira é a destruição ecológica dessa forma de produzir. Florestas são removidas, solo e água contaminados pelo uso maciço de produtos químicos. Agricultores são forçados a deixar suas terras e há milhões que têm de migrar para as favelas das cidades, aumentando a crise urbana, e aumentando a pressão da migração interna, como no Brasil, ou externa, como em muitos outros países.
Então a fome no mundo não tem nada a ver com a produção de alimentos, com a capacidade de produzir?
Não. Não tem nada a ver com a produção. A questão é somente especulativa. É a Bolsa de Chicago que fixa os preços internacionais dos grãos.
E como o senhor vê as afirmações de alguns estudiosos de que o planeta, com uma população na casa dos 7 bilhões de pessoas, se torna incapaz de produzir alimentos para nutrir tanta gente?
Isso é totalmente falso. Segundo a FAO, teoricamente a Terra pode facilmente nutrir 10 ou 12 bilhões de habitantes.
E a questão energética, também faz parte desse cenário de crise?
A crise de energia vai além da explosão conjuntural dos preços do petróleo e faz parte do esgotamento dos recursos naturais explorados pelo modelo de desenvolvimento capitalista. Uma coisa é clara: a humanidade vai ter que mudar a fonte de sua energia nos próximos 50 anos. Os picos de petróleo, urânio e gás podem ser discutidos em termos de anos precisos, mas ainda assim sabemos que esses recursos não são inesgotáveis e que as datas não estão longe. Com o esgotamento, inevitavelmente vem o aumento dos preços das commodities, com todas as consequências sociais e políticas. Além disso, o controle internacional de fontes de energia fósseis e outros materiais estratégicos é cada vez mais importante para as potências industriais, que não hesitam em usar a força militar para se apropriar deles. É no contexto de escassez de energia no futuro que se insere parte do problema dos agrocombustíveis. Diante da expansão da demanda e da redução esperada em recursos energéticos fósseis, há uma certa urgência de se encontrar soluções. Como novas fontes de energia exigem o desenvolvimento de tecnologias ainda não muito avançadas (como a solar ou à base de hidrogênio) e outras soluções são interessantes, mas economicamente marginais ou não rentáveis (mais uma vez, a solar e a eólica), a dos agrocombustíveis pareceu interessante.
Mas a produção dos agrocombustíveis traz também graves consequências.
A produção de agrocombustível é feita na forma de monocultura. Em muitos casos, isso envolve a remoção de grandes florestas. Na Malásia e na Indonésia, em menos de 20 anos 80% da floresta original foi destruída pelas plantações da palma e eucalipto. A biodiversidade é removida, com todas as consequências sobre a reprodução da vida. Para produzir é usado não só muita água, mas um monte de produtos químicos, como fertilizantes ou pesticidas. O resultado é uma poluição intensiva de água subterrânea, dos rios que desembocam no mar, e um perigo real de falta de água potável para as populações. Além disso, os pequenos agricultores são expulsos e muitas comunidades indígenas perdem suas terras ancestrais, causando uma série de conflitos sociais, até mesmo violentos. O desenvolvimento de agrocombustíveis corresponde à negligência das externalidades ambientais e sociais, típicas da lógica do capitalismo.
E como o senhor vê a questão climática nesse cenário atual?
A crise climática é bem conhecida e as informações estão se tornando mais precisas, graças a várias conferências da ONU sobre clima, biodiversidade, geleiras etc. Enquanto o atual modelo de desenvolvimento continuar emitindo gases de efeito-estufa (especialmente CO2), destruindo os sumidouros de carbono, ou seja, sítios naturais de absorção desses gases, especialmente florestas e os oceanos, a crise continuará. A pegada ecológica é de tal ordem que, de acordo com estimativas, em 2010, em meados de agosto, o planeta tinha esgotado a sua reprodução natural. Além disso, de acordo com o relatório do Dr. Nicholas Stern para o governo britânico, em 2006, se as tendências atuais continuarem na metade do século existirão entre 150 e 200 milhões de migrantes climáticos, e os mais recentes números são ainda mais elevados.
E como o senhor avalia as medidas adotadas pelas elites e governos para tentar superar essas crises? E quais são as soluções?
A primeira solução é a do sistema. Alguns, principalmente preocupados com a crise financeira, propuseram mudar e punir os responsáveis. Essa é a teoria do capitalismo (teoria neoclássica em economia), que vê elementos positivos na crise, porque eles permitem a liberação de elementos fracos ou corruptos para retomar o processo de acumulação em bases saudáveis. Atores são alterados, e não se muda o sistema. Evidentemente não é solução. A segunda visão é propor regulamentos. É reconhecido que o mercado regula a si mesmo e que os organismos nacionais e internacionais têm necessidade de executar essa tarefa. Os Estados e organizações internacionais devem ser envolvidos. O G8, por exemplo, propôs certos regulamentos do sistema econômico global, mas ligeiros e temporários. Em vez disso, a ONU apresentou uma série de regulamentações muito mais avançadas. Propôs a criação de um Conselho de Coordenação Econômica Global, em pé de igualdade com o Conselho de Segurança, e também um painel internacional de especialistas para acompanhar permanentemente a situação econômica global. Outras recomendações tratadas foram a abolição dos paraísos fiscais e do sigilo bancário e, também, maiores requisitos de reservas bancárias e um controle mais rígido das agências de notação de crédito. A profunda reforma das instituições de Bretton Woods foi incluída, bem como a possibilidade de se criar moedas regionais em vez de ter como referência única o dólar. Os regulamentos propostos pela Comissão Stiglitz para reconstruir o sistema financeiro e monetário, apesar de algumas referências a outros aspectos da crise, tais como clima, energia, alimentos – e apesar do uso da palavra sustentável para qualificar o crescimento – não têm a profundidade suficiente para fazer a pergunta: para que reparar o sistema econômico? Para desenvolver, como antes, um modelo que destrói a natureza e é socialmente desequilibrado? É provável que as propostas para reformar o sistema monetário e financeiro serão eficazes para superar a crise financeira, e muito mais do que o que foi feito até agora, mas é suficiente para responder a desafios globais contemporâneos? A solução é dentro do capitalismo, um sistema historicamente esgotado, mesmo que tenha ainda muitos meios de adaptação. A gravidade da crise é tal que devemos pensar em alternativas, não somente em regulações.
E, quais seriam, por exemplo, essas outras alternativas?
Questionar o próprio modelo de desenvolvimento. A multiplicidade de crises que foram exacerbadas nos últimos tempos é resultado da lógica de mesmo fundo: uma concepção de desenvolvimento que ignora as “externalidades” (danos naturais e sociais); a ideia de um planeta inesgotável; o foco no valor de troca em detrimento do valor de uso; e a identificação da economia com a taxa de acumulação de lucro e do capital que cria, consequentemente, enormes desigualdades econômicas e sociais. Esse modelo resultou em um crescimento espetacular da riqueza global, mas seu papel histórico se perdeu, devido à sua natureza destrutiva e da desigualdade social que resultou. A racionalidade econômica do capitalismo, escreve Wim Dierckxsens, não apenas tende a negar a vida da maioria da população mundial como também destrói a vida natural.
Temos que discutir alternativas ao modelo econômico capitalista prevalecente hoje e os meios para rever o próprio paradigma (orientação básica) da vida coletiva da humanidade sobre o planeta, conforme definido pela lógica do capitalismo, que hoje é global. A vida coletiva é composta por quatro elementos que chamamos de base, porque as exigências são parte da vida de toda sociedade, desde as mais antigas até as mais contemporâneas: a relação com a natureza; a produção da base material da vida física, cultural e espiritual; a organização social e política coletiva; e a leitura do real e autoenvolvimento dos atores na sua construção da cultura. Ou seja, cada sociedade tem essa tarefa para realizar.
Mas as alternativas necessariamente passam pelo envolvimento do conjunto da sociedade organizada, dos movimentos sociais.
Exatamente. As alternativas são tão importantes que não vão chegar por si só. É somente pela pressão dos movimentos sociais, movimentos políticos também, que podemos esperar chegar a redefinir os objetivos fundamentais da presença humana no planeta e o desenvolvimento humano no planeta. E isso significa transformar a relação com a natureza. Passar da exploração ao respeito. Significa outra definição da economia. Não somente produzir um valor agregado senão produzir as bases da vida. Da vida física, cultural, espiritual de todos os seres humanos no planeta. Isso é a economia. Porém, isso não corresponde à definição do capitalismo. Também é preciso generalizar a democracia a todas as instituições, não somente políticas e econômicas mas também na relações humanas, relações entre homens e mulheres etc. É necessário também não identificar desenvolvimento com civilização ocidental e dar a possibilidade a todas as culturas, religiões, filosofias de participar dessa construção. Isso é o que chamo de construir o bem comum da humanidade, que é a vida; assegurar a vida, a vida do planeta e a vida da humanidade. Isso é um projeto alternativo, que pode parecer utópico. Porém não é utópico porque existem milhares de organizações e movimentos sociais que já trabalham para transformar esses aspectos da vida comum da humanidade, para melhorar a relação com a natureza, para ter outro tipo de economia, para ter uma participação, uma democracia que seja participativa e para renovar a cultura. Existem muitas iniciativas. Isso posso chamar de construção do socialismo. Porque socialismo não é uma palavra. É um conteúdo. E eu penso que devemos redefinir o conteúdo do socialismo.
Como o senhor analisa a América Latina neste contexto da crise e qual é o papel dos movimentos sociais?
É muito interessante porque a América Latina é o único continente do mundo onde temos tido alguns avanços. Não ainda na opção de novo paradigma, nova orientação fundamental, porém, pelo menos avanços, que não existem em outros continentes até agora. Mas não é algo generalizado na América Latina. Há alguns países que só reproduzem o sistema, com sua dependência ao capital internacional, particularmente do norte do continente americano. São países como México, Colômbia, Chile, Panamá, Costa Rica, Honduras etc. São países onde a burguesia local está totalmente vinculada com o sistema internacional e, nesse sentido, não tem outro projeto senão um projeto muito repressivo contra as populações.
Subordinação total.
Exatamente. Há uma segunda realidade, que são os países que podemos chamar de “adaptações ao sistema”. E aí existem dois tipos de países. Há os que dizem: sim, o sistema necessita de mudanças fundamentais e devemos nos adaptar à lógica do capitalismo. E para se ter mais justiça social e repartir parte do lucro, como já dizia Marx, com o rápido avanço das forças produtivas, temos um aumento dos lucros e da destruição da natureza. Nesse tipo de desenvolvimento se inserem Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, que possuem programas sociais eficazes. Com resultados indubitáveis porque milhões de pessoas saíram da pobreza, o que não podemos desprezar, porém, esse modelo não transforma profundamente a sociedade; isso representa apenas uma redistribuição de parte do lucro. Não podemos dizer que é uma mudança de paradigma. Entretanto, há países como Venezuela, Equador e a Bolívia, que têm outro discurso, o do socialismo do século XXI, que pelo menos faz uma alusão a uma transformação fundamental. Pelo menos no Equador e na Bolívia, entre o discurso e a prática eu vejo grande avanços, em que as práticas dos governos seguem uma orientação das demandas sociais apresentadas pelos movimentos sociais.
Então, neste contexto de crise, os países que estão mais vulneráveis sofrem mais as consequências?
Não estou seguro. Teoricamente pode-se dizer que sim, esses países serão mais afetados em médio prazo. Porém, no momento é igual em todas as partes. Mas, evidentemente, os países mais vinculados ao sistema serão mais afetados em médio prazo. Entretanto, desgraçadamente, países como Venezuela e Bolívia também são indiretamente dependentes do sistema global e sofrerão as consequências. O que eu acho que é cedo demais pra se dizer, com dizSamir Amin, que eles conseguiram fazer uma desconexão. Não, não conseguiram. Mas é óbvio que as economias mais vinculadas à economia do Norte sofrerão as consequências a curto prazo.
No caso da América Latina, uma maior integração dos países seria uma alternativa frente a esse cenário mundial? O papel do Estado é fundamental neste contexto?
Absolutamente. Mas, para encerrar a tipologia, eu penso que a Venezuela é um país que avança para um novo modelo, onde as mudanças são mais aprofundadas. O papel do Estado não pode ser concebido sem levar em conta a situação dos grupos mais marginalizados socialmente, os sem-terra, as castas mais baixas ignoradas por milênios, os povos indígenas da América e os excluídos de ascendência africana; e, nesses grupos, as mulheres são muitas vezes duplamente marginalizadas. A expansão da democracia também se aplica para o diálogo entre os movimentos políticos e sociais. A organização de instâncias de consulta e diálogo pertence ao mesmo conceito, respeitando a autonomia mútua. O projeto de um conselho de movimentos sociais na arquitetura geral da Alba é uma tentativa original nessa direção. O conceito de sociedade civil muitas vezes utilizados para esse fim ainda é ambíguo, porque ela é também o lugar da luta de classes: há realmente uma sociedade civil de baixo e de cima e o uso do termo de forma não qualificada permite muitas vezes a criação de uma confusão e a apresentação de soluções que ignoram as diferenças sociais. Por outro lado, as formas de democracia participativa, como os encontrados em vários países latino-americanos, também entram na mesma lógica da democracia em geral. Todas as novas instituições regionais latino-americanas, como o Banco do Sul, a moeda regional (o sucre) e a Alba, serão objeto de atenção especial na direção de propagação da democracia. E o mesmo vale para os outros continentes.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
Argentina denuncia Monsanto por escravidão, diz jornal
A Administração Federal de Ingressos Públicos da Argentina (equivalente à nossa Receita Federal) denunciou a Monsanto pela exploração de 65 trabalhadores em condições semelhantes à de escravos com base em uma fiscalização realizada no final do ano passado. A informação é do jornal argentino Página 12, que publicou reportagem sobre o assunto na edição desta terça (17). O flagrante aconteceu em um dos campos da Rural Power, empresa contratada pela Monsanto, que também acabou sendo denunciada.
A informação é de Leonardo Sakamoto, jornalista, e publicada no seu blog, 18-01-2012.
A história, que está repercutindo na internet, também foi divulgada pela Associated Press (“Argentine tax agency raids Monsanto contractor, finds slave-like conditions in cornfields“), que procurou a companhia, mas sem sucesso.
De acordo com a publicação, os camponeses contratados para trabalhar na lavoura de milho foram levados a uma área a 200 km de Buenos Aires, sendo vítimas de fraude e endividamento e proibidos de deixar o local (no Brasil, damos a isso o nome de “trabalho análogo ao de escravo”, crime previsto no artigo 149 do Código Penal, com 2 a 8 anos de prisão). À fiscalização, disseram, segundo o jornal, que cumpriram jornadas de até 14 horas seguidas no processo de desfloração do milho.
Na produção de sementes transgênicas, trabalhadores rurais têm que separar manualmente as flores de algumas das espigas para tentar controlar o processo de reprodução e as características desejadas na nova safra. Na Argentina, as denúncias de violações trabalhistas no cultivo de milho transgênico têm sido constantes.
Procurados pelo jornal Página 12, os representantes da empresa no país afirmaram que realmente o campo foi inspecionado, mas que a e multinacional não foi informada sobre a denúncia. Eles ressaltaram que a Monsantomantém “os padrões mais altos para os trabalhadores” e possui forte preocupação em relação a “direitos humanos”. E que a Rural Power também atende às normas da companhia e à lei argentina.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
Em crise, capitalismo ocidental vê dinamismo se mudar para a Ásia
Alguns anos atrás, teria sido difícil, senão impossível, imaginar os líderes europeus, tigela na mão, recorrendo ao socorro financeiro de Pequim. Igualmente, poucos teriam previsto que líderes chineses em visita a Washington repreenderiam publicamente os políticos americanos pela má gestão da maior economia do mundo. Mas o mundo mudou. A implosão do sistema financeiro nos EUA e na Europa em 2008 e a crise da dívida soberana europeia deflagrada no ano passado têm acelerado o deslocamento do dinamismo econômico para a Ásia.
A reportagem é de David Pilling, publicada pelo Financial Times e reproduzida pelo jornal Valor, 18-01-2012.
Em 2012, os EUA e a Europa provavelmente estarão flertando com uma recessão na maior parte do ano. Salvo um pouso forçado na China, a Ásia, exclusive o Japão, deverá continuar a avançar bem, a cerca de 7%, segundo a maioria dos economistas.
A mudança dramática na sorte dos países gerou um certo triunfalismo entre alguns asiáticos. "Não há crise do capitalismo", diz Meghnad Desai, professor emérito da London School of Economics. "Há uma crise do capitalismo ocidental, que entrou na terceira idade. O capitalismo dinâmico, com sua energia, inovação e pura gana de crescer foi para o Oriente."
Desai não está sozinho na percepção de uma espécie de punição moral. Os países asiáticos foram "atropelados" pelo Ocidente durante séculos, diz ele, e até há relativamente pouco tempo eram acusados veementemente de serem "casos perdidos" incapazes de prover suas necessidades alimentares. Agora, diz ele, é o povo do sul em geral e da Ásia em particular que estão administrando de forma mais eficiente as forças geradoras de riqueza do capitalismo.
Mas essa sensação triunfalista tem limites. Por pelo menos três razões interligadas, a crise do capitalismo no Ocidente é profundamente inquietante também para o Oriente.
Em primeiro lugar, com exceção do Japão, da Coreia do Sul e de alguns pequenos países, como Cingapura, as nações asiáticas continuam a ser majoritariamente pobres ou, na melhor das hipóteses, de renda média. Muitas tinham traçado um caminho rumo à prosperidade futura mediante a adoção de políticas cada vez mais "capitalistas" de abertura de suas economias às forças do mercado, afrouxando o controle do Estado sobre os bancos, juros e câmbio. Mas esse caminho para a prosperidade agora parece cada vez mais perigoso, vulnerável a altos e baixos e a catástrofes financeiras.
Os tecnocratas asiáticos que confiam numa mudança gradual para um capitalismo de livre mercado, muitas vezes em oposição a vozes mais intervencionistas ou nacionalistas em casa, estão confusos ou desiludidos. Changyong Rhee, economista-chefe do Banco de Desenvolvimento Asiático (BDA), diz que grande parte disso vem do fato de os governos ocidentais terem mudado de tom radicalmente desde a crise financeira da própria Ásia, em 1997. Na época, o Fundo Monetário Internacional - padrasto do laisser-faire pregado pelo Consenso de Washington - receitou remédios drásticos para economias como as de Tailândia, Indonésia e Coreia. Esses países foram orientados a cortar gastos governamentais mesmo nas garras da recessão, a aumentar as taxas de juros, a cortar os vínculos entre os bancos e o Estado; e a desregulamentar. Agora, porém, as economias ocidentais estão prescrevendo quase o oposto para si mesmas. Elas estão apertando sua política fiscal, reduzindo as taxas de juros e usando dinheiro público para salvar bancos.
Do ponto de vista asiático, isso faz o Ocidente parecer hipócrita, na melhor das hipóteses. Na pior, parece que as acalentadas premissas sobre como governar uma economia são besteirol cínico. "Nós nos sentimos amargos", dizRhee. "Nós queríamos praticar essas políticas intervencionistas, mas fomos proibidos de praticá-las. Então, qual modelo devemos seguir agora?" A China, diz ele, tinha se comprometido com uma reforma gradual do mercado. "A questão era: qual seria a velocidade certa? Agora, eles estão se perguntando se o destino está correto ou não."
Richard Koo, economista-chefe do Nomura Research Institute, analisa a crise do ponto de vista do Japão. Tóquio, diz ele, foi repreendida durante anos pelos formuladores de políticas ocidentais por não liquidar contabilmente seus empréstimos problemáticos mais rapidamente e por não tomar mais medidas drásticas de política monetária para reaquecer a economia. O que eles não compreenderam foi que numa "recessão de balanço de pagamentos" em período pós-colapso econômico, quando o setor privado fica muito endividado, soluções econômicas normais deixam de funcionam, diz ele. Os manuais de economia não contêm respostas para os atuais problemas do capitalismo.
"O que nós passamos nos últimos 20 anos no Japão, e que os EUA e o Reino Unido agora estão passando, é que, mesmo com taxas de juros nulas, as pessoas não querem tomar empréstimos", diz ele. "Elas limitam-se a pagar suas dívidas." Se ele estiver certo, então as economias ocidentais tendem a passar por um prolongado período, ao estilo japonês, de crescimento lento. Pode não servir de grande consolo, mas Tóquio, pelo menos, poderá dizer: "Nós avisamos".
A segunda razão pela qual os problemas do Ocidente são desconcertantes para o Oriente é que, a despeito de toda a conversa, antes na moda, sobre valores asiáticos, nenhuma economia da região criou uma alternativa coerente ao capitalismo. Sem dúvida, houve variações sobre o tema, inclusive um Estado mais intervencionista. Mas os experimentos anticapitalistas radicais, principalmente o comunismo de estilo chinês e o "socialismo" da Índia deNehru (1889-1964), foram grandes fracassos.
A China abandonou o comunismo no fim dos anos 1970, quando Deng Xiaoping abriu a economia para as forças do mercado. Em 1991, a Índia abandonou sua própria versão de socialismo, que a havia condenado à penosa "taxa hindu de crescimento". Outros países, como o Vietnã, seguiram o exemplo, abrindo suas economias, promovendo seu próprio crescimento rápido. Por outro lado, aqueles que aferraram-se obstinadamente a sistemas não centrados no mercado, como a Coreia do Norte, Mianmar e Laos, continuaram chafurdando na pobreza.
Terceiro, os asiáticos não estão em posição de alegrar-se com uma crise do capitalismo no Ocidente, uma vez que suas economias, nas palavras de Donald Tsang, executivo-chefe de Hong Kong, todos estão no mesmo barco mundial. "Se parte do barco tem um buraco no meio, você não pode manter-se à tona", diz ele. Na Índia, existem preocupações profundas com que uma história de crescimento impulsionado por empresas familiares e por financistas capitalistas ocidentais possa estar desaparecendo. Mesmo a China está desacelerando, e uma minoria de economistas prevê um pouso forçado.
Pouca gente na Ásia ainda afirmaria que os asiáticos podem viver sem uma sólida demanda dos EUA e da Europa.Zhu Min, economista chinês e vice-diretor-gerente do FMI, disse recentemente que os consumidores chineses responderam por apenas US$ 2 trilhões da demanda, em comparação com os consumidores americanos, que mesmo em sua atual situação precária, gastaram cerca de US$ 10 trilhões em um ano. Se o capitalismo ocidental está em chamas, as labaredas cedo ou tarde lamberão as portas da Ásia.
A crise do capitalismo no Ocidente coloca muitas questões quanto à gestão adequada das economias asiáticas. O tema unificador é: quão ativo deve ser o papel do Estado? As economias asiáticas têm sido criticadas por especialistas ocidentais por serem demasiado intervencionistas. Até recentemente, o plano, para a maioria, era remover gradualmente a mão balizadora do Estado. Mas o fracasso da teoria ocidental de mercado racional e as armadilhas óbvias de regulamentação moderada deixaram algumas autoridades econômicas asiáticas mais cautelosas quanto a marchar aceleradamente no caminho da liberalização.
A questão de como o Estado deve agir envolve quase tudo, de supervisão financeira a política industrial. Um dos temas mais cruciais é o papel dos bancos. Na Ásia, eles tendem a ter uma função mais estreita: seu papel tem sido canalizar dinheiro para a economia "real", principalmente o setor de manufatura.
Os asiáticos poderiam ser tentados a manter-se dentro de seu estreito modelo - não apenas é menor a probabilidade de esses bancos colocarem a economia em apuros, como também é mais fácil controlar seu comportamento em tempos de estresse. Desde 2008, Pequim julgou útil ter bancos "domesticados" através dos quais o governo pode alocar crédito à economia real a taxas de juros fixas. Agora que eles já viram os perigos de deixar os bancos à vontade, por que partiriam os governos asiáticos para modelos mais "sofisticados" de bancos ocidentais?
Yao Yang, da Escola Nacional do Desenvolvimento, na Universidade de Pequim, argumenta que essa seria uma lição totalmente errônea. "Há pessoas na China, tanto no governo como na intelligentsia, para as quais a China deveria voltar a seu antigo modelo centrado no governo", diz ele. "No entanto, a maioria das pessoas ainda acredita que a China precisa continuar em seu caminho rumo a uma economia mais aberta."
Outros ressaltam o fato de que os bancos sob governança estatal podem entrar - e realmente entram - em apuros ao alocar capital de acordo com o "diktat" do governo. Rhee, do BDA, diz que as economias asiáticas fariam mal em abandonar o aprofundamento de seus mercados de capital. "Se você não viajar de avião, não acontecerá nenhum acidente", diz ele sobre as recentes catástrofes ocidentais. "O Ocidente tem muitos aviões, por isso caem. Deveríamos não ter aviões?"
Uma questão pendente de resposta, com a crise do capitalismo, é em que medida deveriam as sociedades asiáticas ser desiguais. Muitos países, principalmente a China e a Índia entre eles, têm estratégias de crescimento baseadas na "teoria do gotejamento" - segundo a qual todos acabarão se beneficiando com o surgimento de uma classe de super-ricos. Mas, como no Ocidente, os asiáticos estão questionando essa abordagem de laisser-faire.
"A vantagem do modelo anglo-saxão é clara. Incentiva a inovação, é versátil e promove as liberdades individuais", dizYao. "Mas suas desvantagens são igualmente evidentes. É muito fluido, cruel para os trabalhadores e desencadeia grandes forças destrutivas quando irrompem crises econômicas." Ele prefere um sistema nórdico: altos impostos, relativa igualdade e menos bolhas nos ciclos econômicos. Mas na Ásia, somente o Japão e a Coreia do Sul se aproximam, e apenas de longe, desse modelo.
Depois de o Ocidente ter despejado tantas regras, os asiáticos podem ter algum prazer em face do desconforto americano e europeu. No entanto, a única grande economia asiática que se aproximou dos padrões de vida americano foi a do Japão, no fim dos anos 1980 e início dos 1990, e sua economia estagnou antes que pudesse consolidar sua posição dominante. A China construiu uma máquina de produzir rápido crescimento em um país pobre, mas não há garantias de que será capaz de igualar os padrões de vida ocidentais se não promover uma reforma radical.
Certamente, no contexto de uma definição ampla de capitalismo, o Estado pode ser maior ou menor; pode intervir mais ou planejar menos. Essas alternativas de política econômica estão em discussão em muitos países asiáticos. No fim das contas, porém, a maioria está convencida pelo capitalismo - e, na ausência de algo melhor, aqueles que querem elevar a renda de seu povo terão de praticá-lo em alguma forma.
"Se você olhar a China, verá que o país mostra efetivamente o poder do capitalismo, o poder dos mecanismos e incentivos de mercado", diz Rhee. "Alguns elementos do capitalismo são evidentemente necessários."
Ásia vai "muito bem", diz Stiglitz
Na opinião de Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001, a Ásia está indo "muito bem" e tem condições de administrar o atual momento de incertezas econômicas. Em visita a Hong Kong para participar do Fórum Financeiro Asiático, Stiglitz afirmou que a região dispõe de um arsenal de medidas contra os riscos globais, citando como exemplo a decisão do Banco do Povo da China (o banco central do país), no mês passado, de permitir que os bancos diminuam as parcelas de seus depósitos que devem ser alocadas como reservas. O economista disse ainda que o crescimento da China agora é mais "sustentável".