A realidade da campanha eleitoral por vezes confere ao Brasil uma aparência de país irreal –espécie de romance de Cabral, com prefácio de Caminha.José Serra, um dos protagonistas, esteve em Goiânia nesta segunda (11). Carregava atrás de si um par de dúvidas.
Ambiguidades resultantes de provocações feitas na véspera por Dilma Rousseff, a outra personagem do enredo sucessório.No debate da TV Bandeirantes, Dilma levou aos holofotes dois nomes: Mônica Serra e Paulo Vieira de Souza.
Sobre a primeira, declarou: “Sua esposa, Mônica Serra, disse: ‘A Dilma é a favor da morte de criancinhas’. Acho gravíssima a fala da sua senhora”.
Quanto ao outro, Dilma afirmou: “Você deveria responder sobre Paulo Vieira de Souza, seu assessor, que fugiu com R$ 4 milhões de sua campanha”.
Em ambos os casos, Serra fingiu-se de morto no debate. Não se animou nem mesmo a sair em defesa de sua mulher.Pois bem. Na passagem pela capital de Goiás, Serra viu-se compelido a dizer meia dúzia de palavras sobre o embate da Bandeirantes.Declarou-se surpreso com a agressividade de Dilma. Com atraso, reportou-se à menção feita por sua rival a Mônica Serra:
"Ataque à família não é bom na campanha. Campanha é para discutir propostas, comparar candidatos, o que eles fizeram, o que vão fazer". Absteve-se de esclarecer o teor da "gravíssima fala da sua senhora". Coisa pronunciada no mês passado, num corpo-a-corpo em Nova Iguaçu (RJ). Uma pena.
Tão grave quanto o “ataque à família” é a retórica da “morte de criancinhas”. A mulher de Serra, por ilustrada, decerto não ignora o significado de uma apelação.Quanto a Paulo Vieira de Souza, um ex-gestor de obras do governo de São Paulo conhecido como Paulo Preto, Serra disse o seguinte:
"Eu não sei quem é o Paulo Preto. Nunca ouvi falar. Ele foi um factóide criado para que vocês [repórteres] fiquem perguntando".Curioso, muito curioso, curiosíssimo. Serra empregou o mesmo vocábulo que Dilma usara ao comentar pela primeira vez o ‘Erenicegate’: “Factóide”.
É improvável que Serra desconheça Paulo Preto. Até abril deste ano, ele ocupou um posto estratégico do governo de São Paulo: diretor de Engenharia da Dersa.Na gestão do governador Serra, o homem que o candidato Serra diz ignorar cuidava das grandes obras rodoviárias do Estado. Entre elas o Rodoanel.Ex-chefe da Casa Civil de Serra, Aloysio Nunes Ferreira, agora senador eleito por São Paulo, mantém com Paulo Preto relações de amizade.
Ao tratar como “factóide” o sumiço de R$ 4 milhões supostamente coletados para nutrir as arcas de sua campanha, Serra desrespeita o eleitor.Se verdadeiro, o episódio mereceria do candidato ao menos uma declaração protocolar em favor da investigação.Se inverídica, a acusação de Dilma, recolhida de notícias penduradas nas manchetes, justificaria uma reação indignada.
O silêncio de Serra autoriza a rival petista a mimetizar a pergunta que o tucanato fazia em relação ao R$ 1,7 milhão do dossiê dos aloprados petistas de 2006.
Os grã-tucanos gostavam de inquirir: “De onde veio o dinheiro?”. O petismo está liberado para indagar: “Para onde foi a grana?”
Serra percorreu as ruas de Goiânia em carreata. Além de políticos, o candidato tinha a seu lado um padre.Chama-se Genésio Ramos. Comanda a Paróquia de São Francisco de Goiás, assentada na cidade de Anápolis.
Padre Genésio presenteou Serra com um terço. Diante de uma multidão estimada pela PM em 5 mil pessoas, o candidato beijou o adereço (repare na foto lá do alto).
Ao discursar, Serra declarou: "Nós estamos movidos pela fé. A fé de dentro da gente, a fé que vai construir o Brasil".
No Brasil irreal –aquele país do romance de Cabral, prefaciado por Caminha— a fé constrói qualquer coisa.No país cuja realidade é tinada pela dúvida, exige-se algo mais dos pretendentes à cadeira de presidente da República.
Para utilizar uma gíria ao gosto de Serra, não fica bem para um candidato contrapor a uma grave acusação da adversária uma resposta alicerçada em mero trololó.Josias de Souza escreveu hoje em seu blog (...)
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