quinta-feira, 26 de abril de 2012

Espanha deixará 150 mil imigrantes sem cartão saúde em dois anos

As medidas anunciadas pelo governo da Espanha deixarão sem cartão de saúde cerca de 150 mil estrangeiros em situação irregular no prazo de dois anos, segundo os cálculos do "El País". Isso representaria uma economia aproximada de 240 milhões de euros, em vez dos 500 milhões previstos inicialmente pelo Executivo, se tomarmos como base o gasto médio de um cidadão espanhol em serviços de saúde.

Segundo o rascunho do decreto a que este jornal teve acesso, a residência não será a única condição para ter acesso ao cartão que dá direito às consultas básicas. Será preciso estar assegurado. E isto de modo geral implica inscrever-se na Previdência Social.

A reportagem é de E. de Benito e Charo Nogueira, publicada pelo jornal El Pais e reproduzida pelo Portal Uol, 25-04-2012.

Como os estrangeiros têm de renovar essa documentação a cada dois anos, bastará endurecer os requisitos para deixá-los fora, sem necessidade de tomar outro tipo de medidas mais drásticas, como identificá-los antes de anular seu cartão.

O cálculo do número de afetados pela medida se baseia no cruzamento de dados entre o censo e o Registro Central de Estrangeiros. O primeiro, que até agora deu acesso ao cartão de saúde, inclui 459.946 pessoas a mais que o segundo. Mas, destas, a maioria (306.477) é residente na União Europeia e, portanto, não tem obrigação de se inscrever no registro, como confirmam fontes governamentais. Eliminados estes da lista de estrangeiros em situação irregular, 153.469 pessoas cumprem atualmente as condições para ter cartão de saúde.

O passo seguinte é calcular o que essas pessoas gastam. Se aplicarmos os 1.600 euros por pessoa que cada espanhol custa por ano em saúde, saem os 240 milhões de euros. No máximo.

E é preciso destacar esse "no máximo", já que o cálculo foi feito tomando-se as condições mais favoráveis à tese do governo. Como diz um especialista que trabalha há 25 anos prestando atendimento a imigrantes e que prefere manter o anonimato, nesse número estão incluídos os menores (cerca de 15%) e se supõe que estes não serão afetados pela medida. Tampouco ficarão sem atendimento as mulheres que engravidem.

A outra grande generalização desse cálculo é que se supôs que o gasto médio de um estrangeiro é igual ao de um espanhol. E todos os estudos indicam que não é assim. "Não há frequência excessiva dos imigrantes, nem eles fazem mal uso", afirma Josep Basora, presidente da Sociedade Espanhola de Medicina Familiar e Comunitária (Semfyc).

Um dos últimos trabalhos nesse sentido é o que foi feito com dados de 2009 por Ángel Alberquilla, técnico de Saúde Pública da Comunidade de Madri. O estudo, concentrado na área 11 da capital, que abrange um setor de quase 900 mil habitantes, dos quais 20% são imigrantes, é demolidor. Todas as partidas estudadas: consumo de medicamentos, visitas a consultórios e hospitalizações indicam que os estrangeiros consomem menos.

Por exemplo, no consumo de farmácia a média está em 381 euros por pessoa e ano. Mas a proporção entre autóctones e estrangeiros é quase de um para cinco: 96,50 euros para os imigrantes e 446,40 euros para os nacionais.

Algo parecido ocorre com a chamada "carga de enfermidade", uma variável que mede a frequência geral ao sistema de saúde e o número de episódios por paciente: os espanhóis têm uma média de 7,65 e os estrangeiros, 5,05.

A frequência hospitalar por 100 habitantes está na mesma linha (8 para os espanhóis, 5,8 para os estrangeiros). Mas é que inclusive nos internados os estrangeiros gastam menos: 4.710,41 euros dos originários de países pobres contra 6.759,94 dos espanhóis.

Nem sequer usam mais as emergências: o número de visitas a esse serviço corresponde a 40,6% da população imigrante, contra 44,6% da nacional (isso não quer dizer que vão 40%, porque alguns vão mais de uma vez por ano).

Só há um caso em que é verdade que há proporcionalmente mais estrangeiras que espanholas: nas unidades de maternidade.

Para o especialista acima citado, a explicação desses dados é "óbvia, embora seja preciso repeti-la": os imigrantes são em geral mais jovens, os fortes de cada casa, que são os que emigram para poder enviar ajuda a suas famílias nos países de origem.

Talvez o caso mais extremo disso seja o dos subsaarianos. Antonio Díaz de Freijo, presidente da ONG Karibu, especializada nessa população, narra que demoram em média três anos para chegar à Espanha. "Têm de cruzar o deserto e o mar. Chegam os mais saudáveis", diz. Muitos, quando chegam, vão diretamente para o hospital. Mas é porque esgotaram suas forças no caminho, nas barcas.

Em todo caso, Freijo insiste que "não se pode confundir turismo sanitário com imigração". Os dados dos relatórios estudados demonstram isso. São os estrangeiros que vêm de países ricos, muitos deles aposentados, que têm um consumo mais aproximado do dos espanhóis.

Medida ameaça combate a doenças e vai lotar as emergências

Deixar os estrangeiros irregulares sem acesso ao atendimento básico e aos serviços especializados regride à situação de 2000, antes que a mudança na lei de estrangeiros lhes permitisse possuir cartão de saúde só por responder ao censo. Isso, para alguns especialistas, como um médico de Madri que há 25 anos atende a essa população, é "voltar aos anos 1980". "É muito importante que recebam controle de doenças infecciosas, muitas delas transmissíveis", afirma. "Não só para beneficiar o indivíduo, mas também sua comunidade, que costuma ser imigrante, mas também a população em geral, que é com a qual lidam", acrescenta.

Entre essas doenças está a tuberculose. "Em Madri, os imigrantes já são 50% dos casos", diz. "E os esforços para controlá-la sofreram um retrocesso."

Algo parecido acontece com o HIV. "40% dos novos diagnósticos o são", acrescenta. O Coletivo de Gays, Lésbicas, Transexuais e Bissexuais de Madri (Cogam) acredita que com isso os estão "condenando à morte". "O número de imigrantes atendidos em nossos programas de saúde representou em 2011 31% no programa de teste rápido e 81% no programa de atendimento a trabalhadores sexuais", acrescenta a Cogam. Ficar sem cartão os condenaria a uma situação sem saída. Sem cartão não poderão ter acesso ao medicamento. Este na Espanha só é dado em hospitais. E se fosse vendido custaria cerca de 7 mil euros por ano. Demais para a maioria.

E claro que os doentes estrangeiros terão uma saída parcial: procurar as emergências. O presidente da Sociedade Espanhola de Medicina de Urgência e Emergências (Semes), Tomás Toranzo, o confirma. "E são serviços já sobrecarregados, aos quais vão acrescentar um problema", afirma.

Porque, segundo Toranzo, "não se pode impedir que as pessoas procurem as emergências". "A definição desse estado é subjetiva, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). E todos têm de ser atendidos. Só depois se pode decidir se era um caso de autêntica urgência", indica o especialista.

"Vão nos pedir um atendimento que não podemos dar", expõe. Por exemplo, uma pessoa chega a emergência e se detecta uma mancha em um tumor. "Não poderemos enviá-la a um especialista, a um oncologista, para que diga se tem câncer." Isso vai repercutir "em conflitos nos serviços e afetará os profissionais, mas também os usuários", indica Toranzo.

Antonio Díaz de Freijo, da ONG Karibu, afirma que "desde que começou a crise, notamos uma maior demanda". Sua associação, cujo nome significa "bem-vindo" em suahili, atende cerca de mil pessoas por ano. "Muitas não sabem nem que podem ir à emergência; outras não podem pagar a medicação que é receitada", acrescenta.

Esse é um problema com o qual se encontrarão muitas famílias, segundo Vladimir Pascual, presidente da associação hispano-equatoriana Rumiñahui. "A medida torna ainda mais vulnerável um coletivo que já o é por si", reclama. "Deixar essas pessoas sem cobertura de saúde pode acarretar problemas de saúde pública e aumentar a afluência nas emergências, assim que a pretensa economia não ocorrerá." "Isto atenta contra a saúde pública das pessoas e é muito perigoso. Vai surgir uma assistência de saúde paralela, vai aumentar a automedicação e serão enviados e trazidos medicamentos de outros países." "Como vão nos curar?"

Os possíveis afetados esperam com temor o detalhe das medidas

Yeni C. chegou do Equador a Madri há nove anos. Desde então essa mulher de 25 anos trabalha fazendo faxina em residências, cuidando de crianças... "No que aparecer, mas agora está difícil", comenta. Ela está no país em situação irregular, informa María R. Sahuquillo, de Madri. Como seu parceiro, Carlos, 35, que trabalhou durante anos na construção, mas que há dois perdeu o emprego. "Tive um problema em uma das mãos e me demitiram, mas tinha quase cinco anos de contribuição", explica.

Agora só consegue trabalhar de vez em quando, descarregando caixas em Mercamadrid, a ajuda social terminou e não renovaram seus papéis. Mesmo assim, ele, Yeni e seus dois filhos, de 10 e 2 anos, tinham cartão de saúde porque estavam recenseados. Na semana passada, quando Yeni foi ao médico com as crianças, lhe avisaram que seu cartão e o de sua filha mais velha tinham vencido e precisavam renová-los. "Tenho medo porque não sei o que vou encontrar nem o que vão me pedir. E se ficarmos sem poder ir ao médico? Não poderemos pagá-lo", lamenta a mulher.

"Eu não creio que neste país não vão me atender se eu estiver doente", diz Henry, um guatemalteco de 26 anos. "Como não vão nos curar? Somos de outro planeta?", diz, atrás do mostrador de uma loja em Sevilha, meio inquieto, bufando e rindo. Vive há cinco anos na cidade trabalhando em lojas, sem documentação regularizada nem certificado de recenseamento. Na Andaluzia, o Serviço Andaluz de Saúde facilita para todos os estrangeiros em situação regular, estejam recenseados ou não, o chamado Reconhecimento Temporário de Atendimento de Saúde. Com esse documento - em 2011 foram emitidos 46.194 -, têm direito a todos os serviços.

"Há anos espero o DNI e ter finalmente também meu cartão da Seguridade Social, mas nestes cinco anos de trabalho não pude contribuir", admite Henry. "Mas sempre penso: pelo menos pagamos o IVA, então damos alguma coisa ao Estado", faz questão de comentar. Em cinco anos só foi uma vez ao médico, e foi há dois meses, para que lhe curassem um corte. "Me atenderam muito bem", avalia enquanto toca a ferida já curada. Deram-lhe dez pontos sobre a sobrancelha direita. Henry não consegue imaginar o caso de ficar sem o cartão de saúde. "Não creio que vão me deixar morrer na rua. Isso será como a Guatemala, onde se você não tem dinheiro morre", diz.

Gregorio, um nigeriano de 40 anos, vê claramente que se as coisas continuarem assim terá de voltar a seu país. Está há nove anos na Espanha. Trabalhou como vendedor de loja até 2008, quando a crise começou a apertar. Desde então trabalha no que pode. "Ganho no máximo 40 euros por semana, trabalhando horas avulsas", diz, levantando o gorro branco que cobre sua cabeça. E isso, afirma, tirando por alto. "Há semanas muito ruins", conta. Ele diz que não tem problemas de saúde, mas sente uma dor muito grande na boca. Por isso se aproximou do centro que a associação Karibu tem em Madri. Ali podem receber assessoria médica dos facultativos da organização e também conseguir de graça alguns remédios que foram receitados no centro de saúde. "Mas e agora? E se não pudermos ir ao médico?", indaga. O mesmo preocupa seu compatriota Chuks, de 50 anos.

Até agora, explicam no Karibu, nem sempre era fácil conseguir a carteira de saúde, apesar de ter o certificado de recenseamento às vezes algumas comunidades pediam aos estrangeiros outros documentos mais complicados de obter. Por isso muitos optavam por ir ao Karibu e outras organizações que dão assessoria de saúde ao coletivo migrante. É o que aconteceu a Paulo, de Guiné-Bissau, que tem uma infecção na urina e conta que no centro de saúde lhe disseram que esgotou a prestação por desemprego e deve renovar a carteira de saúde por outra via. Essa via, a do atendimento a pessoas sem recursos, previsivelmente não a terá mais.

Paulo, alto e forte, descansa sobre uma das paredes do centro da associação Karibu. Conta que não é a primeira infecção que teve. "Há alguns meses tive uma bronquite muito forte e precisei tomar remédio durante várias semanas", diz. "Alguns são muito caros e não posso pagar", comenta. Não sabe o que fará a partir de agora. "Nós não queremos adoecer. Mas e se acontecer?", afirma.

É um argumento repetido entre a população estrangeira. Muitos não conhecem a reforma e, como Cheick, arregalam os olhos quando lhes explicam que por não estarem em situação regular na Espanha poderiam perder a carteira de saúde. Esse senegalês de 35 anos teve há um ano uma peritonite e desde então teve várias infecções. "A partir de agora vou ter de pagar, ou o quê?", pergunta, perdido. Conta que está na Espanha desde 2006, trabalhando no que pode. "Sobretudo em vendas", comenta.

Também se mostra preocupado Teja Tejindra, nepalês de 39 anos e sem documentos em dia para permanecer na Espanha. Tejindra precisa de atendimento de saúde com frequência para tratar uma asma crônica. "Quando tenho crise, preciso de medicação. Onde poderei consegui-la agora?", pergunta, diante dos planos do governo de fechar o atendimento médico aos imigrantes em situação irregular. Tejindra chegou a Barcelona há cerca de quatro meses, procedente de Valência. "Até agora me atenderam muito bem em todos os ambulatórios... tenho medo do que possa acontecer", indica, enquanto agita os folhetos de publicidade que distribui sobre uma loja que compra ouro. "Com isto dá para comer... mas não para remédios", afirma.

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