quarta-feira, 16 de maio de 2012

Migração: processo espontâneo é criminalizado. Entrevista especial com Helion Póvoa Neto


“As pessoas devem ter o direito de migrar para onde haja condições melhores de vida”, declara o geógrafo.

Confira a entrevista.

De um processo espontâneo, a migração passou a ser criminalizada em alguns países, a exemplo da França, que atribui aos imigrantes algumas dificuldades econômicas e sociais dos últimos anos. Estudioso do tema, o professor Helion Póvoa Neto (foto abaixo) esclarece que existem duas formas de criminalizar os imigrantes. Uma delas, recorrente nos Estados Unidos e na Europa, consiste em prender e mesmo processar as pessoas que atravessam a fronteira de forma irregular, ou aquelas que permanecem no país com o visto vencido. A outra, enfatiza, diz respeito ao anti-imigrantismo, onde a sociedade e os políticos responsabilizam os imigrantes pelo desemprego e pela falta de segurança. Para ele, apesar das polêmicas em torno das migrações, “todos os países tentam de alguma maneira selecionar quem atravessa as fronteiras e quem se estabelece. Acontece que esse é um processo muito difícil, já que se trata de um processo espontâneo”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Póvoa Neto explica as principais transformações em relação às migrações, com destaque para a feminização da migração. Segundo ele, “hoje em dia é cada vez mais comum a mulher migrar sozinha ou liderar o processo de migração. As mulheres já são mais ou menos a metade dos migrantes internacionais em todo o mundo”. O pesquisador também comenta as recentes migrações para o Brasil e critica a postura da mídia brasileira em relação aos imigrantes haitianos e europeus. “A mídia aborda com muito mais benevolência e muito mais receptividade a migração recente de europeus do que a de os outros imigrantes. Há um discurso de que o Brasil deveria incentivar principalmente a imigração qualificada, só que, na medida em que o Brasil se torna uma economia mais forte, inevitavelmente vai receber imigrantes da América Latina e Caribe”, assinala.

Helion Póvoa Neto é graduado em Geografia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo – USP. Leciona no Instituto de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios – NIEM, além do grupo de trabalho Migrações Internacionais, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – Anpocs.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Hoje quais são os grandes fluxos migratórios no mundo?

Helion Póvoa Neto – Em primeiro lugar, os grandes fluxos migratórios são aqueles que vão para as grandes áreas desenvolvidas. América do Norte e Europa Ocidental são as grandes áreas de atração dos migrantes econômicos. Porém, existem também grandes fluxos migratórios para países subdesenvolvidos. Outra área importante é o Oriente Médio: países do Golfo e da área de produção de petróleo recebem muita migração, principalmente de países árabes e asiáticos. E a outra área de migração importante é o extremo Leste Asiático, o Japão e os Tigres Asiáticos. Essas são as áreas do mundo que mais recebem migrantes.

IHU On-Line – Quais são as razões destes fluxos migratórios?

Helion Póvoa Neto – As razões das migrações estão relacionadas à busca de melhores condições de vida, de salário e de sobrevivência. Em geral, as razões são o desemprego, a fome, a pobreza, embora nem sempre sejam os mais pobres que migram. Normalmente são os que têm alguma condição, algum tipo de articulação que facilita a migração. Mas, de forma geral, as áreas de saída dos migrantes são pobres, de mais dificuldade econômica, mais desemprego.

Além de motivos econômicos, as pessoas migram por causas sociais, políticas, de discriminação e de guerras. Esse tipo de deslocamento recebe um nome especial: são os refugiados. Eles são migrantes marcados por uma causa política. Acontece que, entre a causa econômica e política, existem muitas situações mistas. Entre aqueles que entram na migração só por causa econômica e migração só por causa política, há casos que misturam essas duas questões.

IHU On-Line – De que regiões do mundo essas pessoas saem para irem à Europa, Japão, para a América do Norte?

Helion Póvoa Neto – Depende de cada país. Nos Estados Unidos, é marcante a imigração de latino-americanos, além dos asiáticos. Na Europa Ocidental, é muito marcada a imigração vinda dos países do leste Europeu, da África, da Ásia e da América Latina. Quer dizer, a Europa concentra imigração de praticamente todos os continentes. O Oriente Médio, principalmente a área do Golfo Pérsico, recebe muitos migrantes do norte da África e da Ásia. O Leste Asiático recebe principalmente migrantes da própria Ásia.

IHU On-Line – Os migrantes climáticos já são reconhecidos juridicamente como tais?

Helion Póvoa Neto – Algumas pequenas ilhas estão enfrentando um processo de perda do território em função da subida do nível do mar. Porém, isso ainda não é extremamente significativo em relação às migrações. Entretanto, fenômenos como o processo de desertificação estão gerando migrações. Boa parte das migrações na região norte da África, região próxima ao Deserto do Saara (Sudão, Somália) está associada a esse processo, além, obviamente, das causas políticas. Geralmente a migração climática não é causada só pelo clima; ela está articulada a uma causa econômica ou política. Hoje o Sudão é um país que tem um dos maiores deslocamentos de refugiados para fora do país. Isso está associado ao processo de desertificação, que faz com que as terras para agricultura fiquem mais escassas, e às rivalidades étnicas, religiosas e culturais, que fazem com que as terras fiquem ainda mais disputadas.

IHU On-Line – É verdade que as mulheres constituem uma porcentagem cada vez maior dos migrantes? Por quê?

Helion Póvoa Neto – É verdade. Tanto é que existe uma expressão que fala na “feminização da migração” em nível internacional. As mulheres, até algumas décadas atrás, em geral, não migravam sozinhas. Elas migravam junto de sua família, acompanhando os pais ou os maridos. Hoje em dia, é cada vez mais comum a mulher migrar sozinha ou liderar o processo de migração. Elas já são mais ou menos a metade dos migrantes em todo o mundo.

É interessante observar que mulheres, muitas vezes, migram sozinhas e se responsabilizam pelos seus filhos. Há o caso curioso das equatorianas na Espanha: elas migram e passam a enviar dinheiro para a família e o marido, que ficou responsável pelo trato com a família no país de origem. Até a algumas décadas atrás ocorria o contrário, ou seja, o homem é que se responsabilizava geralmente pela migração e envio de remessas.

IHU On-Line – Quais as razões dessa inversão?

Helion Póvoa Neto – Essa feminização ocorre porque, nos países mais rico, há a possibilidade de as migrantes trabalharem com o serviço doméstico, principalmente cuidando de crianças ou idosos. Então, acaba acontecendo de muitas mulheres ocuparem esses postos de trabalho. Isso cria uma demanda muito grande de trabalho feminino e as mulheres tendem a migrar. Para as sociedades mais tradicionais, essa situação era muito difícil, pois em geral as mulheres eram impedidas pelos pais ou pelo marido de migrarem para outro país. Antigamente a sociedade como um todo condenaria essa decisão. Hoje em dia isso é mais comum.

IHU On-Line – Você fala em “criminalização” da migração. O que se deve entender por este fenômeno? Ele é diferente do “anti-imigrantismo”?

Helion Póvoa Neto – Quando falamos de criminalização, estamos falando do fato de que em muitos países o ato de migrar irregularmente tem se tornado um crime. Isso já acontece, por exemplo, em alguns estados dos Estados Unidos e em alguns países da Europa. Existe o crime de migração, ou seja, se uma pessoa atravessa a fronteira de forma clandestina e irregular, ou se permanece por mais tempo do que poderia de acordo com o período previsto no visto, a polícia a retém, e ela pode ser processada pelo crime de migração, ainda que não tenha cometido nenhuma outra infração. A pessoa é processada e até condenada à prisão pelo fato de ter migrado irregularmente.

Existe ainda outro sentido presente no anti-imigrantismo. Nesse caso, a sociedade, as forças políticas, os partidos políticos criminalizam o migrante não no sentido de prender, mas de lhe atribuir os problemas da sociedade. Quer dizer, o imigrante é apontado como responsável pelo desemprego, pela falta de segurança, pela sobrecarga dos serviços públicos. Estamos vendo isso claramente nas eleições francesas. O discurso do Sarkozy criminaliza os migrantes no sentido de dizer que a insegurança nas ruas e os conflitos da sociedade ocorrem por causa deles. Nesse sentido, essa visão criminalizante acaba virando uma ideologia anti-imigrantista, que tenta “vender” a ideia de que se deve impedir a chegada dos imigrantes, ou de mandar embora todos os imigrantes que estão em situação irregular. A candidata francesa mais à direita, Marine Le Pen, leva ao extremo essas propostas.

IHU On-Line – O Brasil, no contexto da América Latina, está se transformando em um polo de atração migratória recente. A que se deve este fenômeno e no que ele se diferencia de outros movimentos migratórios que o Brasil já teve?

Helion Póvoa Neto – Durante cem anos, até meados do século XX, o país foi polo de atuação dos imigrantes, principalmente europeus, mas também japoneses e árabes. Por causa da Segunda Guerra Mundial, esse processo foi interrompido e, quando a guerra acabou, houve uma retomada das migrações. Até meados nos anos 1960, o Brasil ainda recebia imigrantes. Nos anos 1980 e 1990, o país começou a receber uma imigração muito diferente daquela que havia antes da Segunda Guerra Mundial, porque não era mais de europeus, e sim de sul-americanos, com destaque para os bolivianos, argentinos, paraguaios e peruanos e, posteriormente, os asiáticos, mas não mais os japoneses, e sim os chineses e sul-coreanos. Em menor número, também os africanos. Esse perfil se mantém até agora. A imigração de hoje é muito menor do ponto de vista quantitativo.

Nos últimos três ou quatro anos, o Brasil está recebendo novamente imigrantes europeus, principalmente portugueses e espanhóis. Trata-se de uma imigração completamente diferente da imigração de antes da Segunda Guerra Mundial, porque aquela era basicamente de agricultores e operários. A imigração recente é de profissionais liberais, funcionários de grandes empresas ou profissionais autônomos com uma qualificação completamente diferente. Por outro lado, recebe-se imigrantes haitianos, mas é um grupo pequeno que chega a 6.000 pessoas no máximo. Também recebemos africanos, sul-americanos e asiáticos, sendo que alguns grupos começaram a chegar como refugiados, o que é o caso dos angolanos.

IHU On-Line – No que os chamados “novos” migrantes (bolivianos, haitianos...) se diferenciam dos “velhos” (italianos, alemães, japoneses...)?

Helion Póvoa Neto – Eles são diferentes. Em primeiro lugar, porque o Brasil historicamente buscou facilitar a imigração europeia. Então, esse tipo de imigração que vem de países fronteiriços, do Caribe, com imigrantes principalmente de origem indígena ou negros, é uma imigração muito diferente. Em segundo lugar, há uma imigração indocumentada pelas fronteiras, ou seja, que se utiliza da ação de “coiotes”, de atravessadores; isso é uma coisa relativamente nova na história brasileira.

IHU On-Line – A imprensa criou uma inquietação em torno da questão de que o Brasil estaria sendo “invadido” pelos haitianos. Ao mesmo tempo, os europeus vindos para cá em função da crise são muito mais numerosos. Como explicar esse tratamento desigual?

Helion Póvoa Neto – A mídia aborda com muito mais benevolência e muito mais receptividade a imigração recente de europeus do que a de os outros imigrantes. Há um discurso de que o Brasil deveria incentivar principalmente a imigração qualificada. Só que, na medida em que o Brasil se torna uma economia mais forte, inevitavelmente vai receber imigrantes da América Latina e mesmo do Caribe. Nesse sentido, o tratamento que a mídia deu ao falar da invasão de imigrantes haitianos no país me parece totalmente inadequado. Referir-se à imigração como “invasão” é muito preocupante na medida em que se assemelha àquelas atitudes de criminalização, de anti-imigrantismo que estão acontecendo na França, nos Estados Unidos, etc.

IHU On-Line – Sempre houve migração selecionada ou isso é um fenômeno mais recente?

Helion Póvoa Neto – Os países sempre tentaram selecionar o tipo de imigrantes que queriam. Mesmo o Brasil até os anos 1930, até a Segunda Guerra Mundial, selecionava os imigrantes. O critério de seleção era principalmente o de ser agricultor. A maioria dos italianos, japoneses, espanhóis que vieram para o Brasil era formada de agricultores, porque esse era o objetivo da imigração. Depois disso, o Brasil continuou a receber imigrantes, mas não tinha mais uma política ativa para eles. Simplesmente os recebia: alguns eram regularizados, outros não.

Agora, parece estar havendo uma tentativa no sentido de atrair novos imigrantes. Na verdade, todos os países tentam de alguma maneira selecionar quem atravessa as fronteiras e quem se estabelece. Acontece que esse é um processo muito difícil, já que se trata de um processo com elementos espontâneos muito marcados. É ainda mais difícil realizar esse controle no Brasil, que tem fronteiras extensas e uma situação econômica relativamente melhor do que a dos países vizinhos.

No que se refere ao Haiti, o Brasil tem uma presença militar naquele país. Isso significa uma certa forma de “sinalização” para possíveis migrantes, pois, se o país pode manter uma base de militarização no Haiti, então para a população que está lá e quer mudar de vida isso significa que o Brasil tem uma economia forte e pode significar uma janela de possibilidade para o possível imigrante.

Embora os países tendam a selecionar grupos específicos de imigrantes, eles não podem impedir que outros grupos ingressem no país, como faz os EUA. É muito difícil selecionar os imigrantes, mas países como o Canadá, Austrália e Nova Zelândia têm essa política. O Canadá é um país que só tem fronteira com os EUA, então é mais fácil selecionar. No caso brasileiro, é difícil selecionar imigrantes e, por outro lado, deve-se ver a migração como um direito. As pessoas devem ter o direito de migrar para onde haja condições melhores de vida.

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