Menos de um mês após a aprovação do Código Florestal, a Câmara dos Deputados, em Brasília, volta a ser o centro de uma votação importante para o país. À diferença da ocasião anterior, em que prevaleceram interesses particulares sobre as necessidades coletivas, desta vez os parlamentares têm a chance de aprovar uma legislação positiva para o país.
A reportagem é do sítio Rede Brasil Atual, 07-05-2012.
A Proposta de Emenda à Constituição 438, de 2001, mais conhecida como PEC do Trabalho Escravo, será apreciada na terça-feira (8) em plenário e pode, após oito anos na fila, se transformar em realidade. É esta, ao menos, a expectativa do governo Dilma Rousseff, que se vê na obrigação de negociar com uma bancada que ostenta um domínio sem paralelos no Legislativo. Donos de um em cada quatro assentos na Câmara, os representantes do agronegócio são 0,02% da população – mais que o número de “escravos modernos” resgatados em 16 anos.
Sem entrar no debate sobre a necessidade de um modelo político em que estejam contemplados todos os setores da sociedade, tema para outro momento, buscamos entender por que a dificuldade em aprovar uma lei que, afinal, combate um resquício de uma nação que se moderniza sem que desapareçam as marcas do passado. Em cinco reportagens, traçamos o cenário da escravidão contemporânea, aquilo que vai bem e aquilo que falta para que o Brasil possa, enfim, deixar de tratar com naturalidade suas contradições. Quem pode se opor a que se destine para reforma agrária uma terra na qual foi flagrada a escravidão, ou seja, a privatização do corpo de um semelhante como modo de aumentar lucros já polpudos?
Apresentada em 2001 pelo senador Ademir Andrade (PSB-PA), a PEC do Trabalho Escravo foi votada no Senado naquele mesmo ano. Em 2004, após a chacina de fiscais do trabalho em Unaí, Minas Gerais, a Câmara apreciou a matéria em primeiro turno. Falta, agora, a votação final para selar a sorte da escravidão contemporânea no Brasil. “Trata-se do mais poderoso instrumento legal para o combate à escravidão da história do Brasil”, afirmou na última semana a Relatora Especial da ONU sobre Escravidão, a advogada armênia Gulnara Shahinian. “Sua adoção permitirá que pessoas de todos os cantos do país reconquistem sua dignidade, recebam proteção e liberdade deste vergonhoso ato que é a escravidão.”
Para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), pioneira no combate ao trabalho escravo contemporâneo, uma proposta nutrida de valor simbólico: pune o equívoco e converte o objeto do crime em um instrumento para que o trabalhador, com terra nas mãos para produzir, não torne a ser alvo fácil dos aliciadores. Esta, aliás, uma das grandes pendências no combate ao problema.
Como mostram as reportagens, o país avançou nas duas últimas décadas na fiscalização do crime. Mais de 40 mil trabalhadores resgatados depois, como se explica que não se esgote nunca o contingente de população vulnerável a um crime cometido de semelhante para semelhante? O 2º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, editado em 2008 pelo governo Lula, oferece as respostas: sobra impunidade e falta reforma agrária.
Em 2011, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) assentou 22 mil famílias sem-terra, número mais baixo desde o início da série história, em 1995. O Atlas do Trabalho Escravo, publicado em abril pela organização Amigos da Terra, mostrou pela primeira vez o mapa da vulnerabilidade: um enorme cinturão que inclui estados das regiões Norte e Nordeste concentra a maior parte das vítimas. São homens, analfabetos, quase sempre levados para a chamada “fronteira móvel” da Amazônia, ou seja, os lugares nos quais os desmatadores chegam antes do Estado.
Aprovada a PEC, restarão desafios. O primeiro é a própria implementação da proposta. A legislação brasileira tem até hoje dois instrumentos para a expropriação por conta do descumprimento da chamada “função social da terra”. O primeiro, o índice de produtividade, é foco de frequentes contestações judiciais. O segundo, a destinação para reforma agrária da terra na qual seja flagrado o uso de psicotrópicos, como maconha, raramente é utilizado.
Esbarra-se em um Judiciário receptivo ao conceito de uma terra “sagrada”, acima dos direitos humanos básicos e universais, quase sempre disposto a entender a escravidão como uma infração trabalhista qualquer, desprovida de gravidade. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), um proprietário de fazendas, deu recentemente uma aula de relativização do crime. Ao julgar a transformação em réu do senador João Ribeiro (PR-TO), Mendes ponderou que a ausência de refeitórios, de rede de saneamento e mesmo de água para consumo de mil trabalhadores era fruto das próprias condições de vida do povo brasileiro, não se podendo, portanto, criminalizar a pobreza.
Nada que surpreenda. Tampouco há de surpreender o argumento que será utilizado pela bancada ruralista durante a votação de terça-feira. Entre outras coisas, será apresentada a leitura de que o conceito de escravidão moderna não está claro, o que abre espaço para o abuso de poder dos fiscais do trabalho. Mais vale observar o Código Penal, alterado em 2003. O Estado brasileiro reconhece como crime “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.”
Como se vê, espaço para dúvida, não há. Na terça-feira o Brasil pode começar a limpar mais um capítulo sujo de sua história. Ou empurrar com a barriga.
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