Por Wladimir Pomar.
No Brasil há uma parte da esquerda inconformada com os rumos da situação política. Ela considera que as políticas governamentais de redistribuição de renda, que chama de políticas de compensação social, amortecem a capacidade de luta das grandes massas do povo. Acha que o PT se curvou a isso e deixou de ser o grande instrumento de mobilização que fora nos anos 1980. Daí, faz ressurgir a idéia de que o que está faltando para impulsionar os movimentos sociais é um novo instrumento político, um novo partido, que seja capaz de fazer frente ao atual estágio capitalista no país.
A rigor, essa idéia não é nova. Faz pouco tempo, quando a chamada crise do mensalão se abateu sobre o governo e o PT, em 2005, que ela alvoroçou os partidos de extrema-esquerda e levou uma parte do PT a abandoná-lo e fundar o PSOL. Havia uma forte suposição de que a crise levaria o PT e o governo ao fundo, sem retorno. A inevitabilidade de construção de um novo partido pareceu, a alguns, a única forma de manter viva o que consideram chama revolucionária.
Pode-se até admitir que essas suposições expressavam a angústia de pessoas sensíveis aos problemas sociais. Elas podiam estar aflitas para responder rapidamente a um processo complexo que, paradoxalmente, combinava a presença de parte considerável da esquerda no governo com uma situação de mobilização social relativamente fraca e dispersa. Porém, ao contrário do que pensavam, a crise de 2005 não afundou o PT. Este parece haver se reforçado, ao se livrar, embora parcialmente, de dirigentes que achavam possível utilizar impunemente, dentro e fora do partido, os mesmos métodos da burguesia.
A crise de 2005 mostrou que o PT conservava uma militância e uma massa de simpatizantes, na base da sociedade, capaz de entender que esse instrumento político de primeira ordem, criado no fogo das lutas operárias do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, ainda não havia cumprido totalmente seu papel histórico. Não poderia, pois, ser liquidado pelos desvios de dirigentes que se deixaram levar pelos tradicionais métodos burgueses de fazer política.
É pena que, na ocasião, uma parte da esquerda do partido não tenha entendido isso e haja ingressado na frustrante experiência de construção do PSOL. Não entendeu que a mobilização social, a construção partidária, a governança política e, mais ainda, as reformas estruturais, a revolução política e a revolução social não dependem apenas da vontade das lideranças. E nem mesmo de uma política deliberada de evitar o chamado amortecimento das compensações sociais.
Essa parte da esquerda parece saber que para construir um caminho revolucionário não basta reunir alguns bons militantes, aprovar um programa e disputar cargos institucionais. Mas parece não reconhecer que também não basta construir uma estrutura de quadros, organizados em núcleos que funcionem de modo regular. Nem formular uma estratégia que tenha como centro a luta pela conquista do poder do Estado.
Com exceção isolada dos anarquistas, todos os partidos revolucionários surgidos no Brasil, desde os anos 1920, realizaram esse dever de casa, tendo como centro a estratégia de conquista do poder. Procuraram articular essa estratégia à solução dos problemas estruturais da sociedade brasileira. Alguns, como o Partido Comunista, chegaram a ter uma estrutura organizativa de células em todo o país, com raízes no chão das fábricas, bairros urbanos e muitas regiões rurais. Em 1945, quando emergiu de longa clandestinidade, o PCB tinha mais de 200 mil militantes organizados, com um razoável número de quadros que fizeram história.
O que se deve perguntar, em especial quanto ao Partido Comunista, é: por que falhou redondamente, apesar de ter bons militantes e programa, disputar cargos institucionais quando a oportunidade se apresentou, haver construído uma forte estrutura de quadros, até mesmo ter se tornado um partido de massas, entre 1945 e 1947, e possuir uma estratégia cujo centro era a conquista do poder?
É evidente que não há uma causa única. Mas elas certamente não estão relacionadas com falhas no esquema organizativo acima. Elas estiveram centradas na política e não na organização. A estratégia de conquista do poder não estava sustentada numa análise de classes objetiva da sociedade brasileira e, em geral, não levou em conta as mudanças que ocorriam no processo de desenvolvimento do capitalismo, externa e internamente, e que obrigavam seu ajuste.
Por outro lado, em várias ocasiões adotou políticas ou táticas que se afastavam das reivindicações, aspirações e nível de consciência das grandes massas do povo. Por exemplo, em alguns momentos tentou criar sindicatos paralelos. Em outros, acreditou que a burguesia era aliada na luta pela reforma agrária. Ainda em outros, como nos anos 1930, 1935, 1964 e 1972, cindiu-se na leitura da disposição das massas em apelarem para a luta armada.
Portanto, foi nos detalhes da estratégia e da tática que os partidos revolucionários do passado se perderam. Os mesmos detalhes em que alguns agrupamentos partidários ou semi-partidários atuais parecem estar se perdendo. Não basta saber que a construção do caminho para a conquista do poder exige a combinação de paciência e ousadia. Nem ter consciência de que a construção de um projeto revolucionário ocorre justamente nos períodos não revolucionários da história.
Um dos grandes problemas dessa construção consiste em saber em que ela consiste. Na atualidade, uma parte da esquerda acha que basta realizar aquele dever de casa. Ou seja, um dever teórico e prático independente da realidade social e política presente. Um exemplo claro disso é a concepção, muito difundida entre alguns, de que no Brasil os partidos se constituem para disputarem eleição, não para organizar o povo.
Essa é uma visão que desdenha a história e a realidade. Primeiro, não são os partidos que devem organizar o povo. Esta é uma tarefa dos partidos de trabalhadores, revolucionários, democráticos, populares, socialistas e comunistas, não de partidos em geral. Segundo, os partidos que devem organizar o povo ficaram longos períodos sem condições de disputar eleições. A primeira grande participação eleitoral dos comunistas ocorreu em 1946. Depois, desde 1947, jogados outra vez na clandestinidade, só retomaram o direito de participar legalmente do processo eleitoral após o fim da ditadura, nos anos 1980. Mesmo durante o governo JK, o PC não tinha direitos políticos nem vida legal.
Em terceiro lugar, essa visão que desdenha a história não leva em conta que o direito do voto e de participação eleitoral faz parte das conquistas democráticas dos povos e dos trabalhadores, não apenas no Brasil. Sempre foi uma bandeira que ajudou a organizar o povo. Em nosso caso, apesar das tentativas de luta armada, ela continuou nos programas de vários agrupamentos revolucionários como uma conquista a ser feita.
Por que, então, dissociar a conquista democrática e popular das eleições da organização da luta popular? É possível organizar o povo estando dissociado da disputa dos mecanismos eleitorais? Os revolucionários devem deixar esse campo, conquistado numa dura luta histórica, apenas para a burguesia e seus partidos?